AMBIENTE FAMILIAR DE AGOSTINHO

Dezesseis séculos nos separam de Agostinho, nascido a 13 de novembro do ano 354 em Tagaste, hoje conhecida como Souk-Ahras, na Argélia. Tagaste pertencia à província de Numídia, por sua vez província do imenso Império Romano. Destaquemos dois fatos de importância: ainda que sua formação cultural fosse romana, Agostinho se orgulhava de suas origens africanas. A certo conhecido seu, que ridicularizava os nomes cartagineses de alguns mártires, lhe contestou: lembra-te que “sou Africano, escrevo para Africanos e nós dois vivemos na África”.
Não há personagem da Antigüidade mais conhecido do que Agostinho. E de nenhum outro nos chegaram informações tão numerosas. Ao contrário do que sucede com muitos outros homens da Igreja, suas origens foram humildes, e seus pais não eram ricos. Seu pai, Patrício, era um pequeno proprietário, funcionário do município, porém pessoa de escassos recursos financeiros. Teve que fazer grandes sacrifícios para proporcionar a seu filho, de futuro promissor, a formação clássica, única via de acesso a uma futura carreira política. Neste propósito, gastou mais do que seus recursos permitiam, o que tornou impossível custear os estudos posteriores, quando Agostinho abandonou Tagaste. Teve, no entanto, a sorte de encontrar um concidadão rico, Romaniano, disposto a patrocinar o jovem Agostinho. Patrício era pagão. Era generoso, porém de caráter violento e nem sempre fiel à sua esposa Mônica, ainda que nunca tivesse chegado a maltratá-la fisicamente, algo incomum naquele tempo. Recebeu o batismo pouco antes de sua morte, a pedido de Mônica. Ele apenas é mencionado nos escritos de Agostinho. A que se deve este fato? Porque morreu quando Agostinho contava apenas 16 ou 17 anos, ou porque era pagão?
Em compensação, sua mãe Mônica desempenhou um papel de grande destaque na vida e escritos de Agostinho. Ela logrou formar uma família cristã e foi uma mulher de profundas convicções: paciente, decidida, digna, pacificadora entre seus conhecidos inimiga das murmurações. A relação com seu esposo foi de uma submissão exemplar. Não tinha pressa em esperar, sem dizer uma palavra de provocação, até que se aplacasse a ira do marido. E, então, tomava consciência de haver feito o melhor. Agostinho nos conta que “ela desejava ter seu filho junto a ela, como todas as mães, porém, muito mais que a maioria das mães”. Quando criança teve conhecimento da vida eterna prometida por Jesus Cristo. Segundo nos dirá mais adiante, seu terno coração bebeu com o leite materno o nome de Jesus, e estava convencido de ser Cristo o responsável pela decisão de sua mãe de expulsá-lo de casa quando abraçou o maniqueísmo: “Minha mãe, tua serva fiel, chorava por minha causa diante de Ti, mais do que as mães choram pela morte de seus filhos”. Por este motivo, tomou a decisão de visitar um bispo, pedindo com insistência que recebesse seu filho e conversasse com ele. Incomodado, o bispo lhe disse: “Vai, mulher, não é possível que se perca um filho de tantas lágrimas”. Quando Agostinho, aos 28 anos de idade, fugiu à noite com a finalidade de embarcar em direção à Roma, diz em suas Confissões: “Não tenho palavras para descrever o grande amor que me tinha e com que empenho procurava dar-me luz ao espírito, muito acima do empenho com que me havia dado à luz, segundo a carne. De modo que não consigo ver como poderia se restabelecer diante do golpe de minha morte em tal estado. Teria sido uma autêntica punhalada em suas entranhas amorosas”.
Pouco conhecemos dos outros membros de sua família. Apenas sabemos que possuía, pelo menos, um irmão, chamado Navígio, e uma irmã, cujo nome ignoramos, a qual, depois da viuvez, chegou a ser superiora de uma comunidade religiosa.

PERSONALIDADE DE AGOSTINHO

Inteligência e Coração
Aqui temos uma descrição autobiográfica do jovem Agostinho: “Porque já gozava de existência, tinha vida, sentia e me preocupava com minha integridade, como sinal que era da unidade misteriosa de onde procedia. Com o instinto interior, mantinha a integridade de meus sentidos. Alegrava- me com a verdade, com meus pequenos pensamentos, com as coisas miúdas. Não gostava que me enganassem, possuía uma memória brilhante, educava-me na linguagem, encantava-me a amizade, fugia da dor, da baixeza e da ignorância ... Todos eles são dons de Deus, eu não os dei a mim. Tudo isto são bens, e tudo isto eu sou”. Essas qualidades o acompanharão ao longo de sua vida. Era muito sensível, emotivo e apaixonado. Apesar de ser um intelectual, não se encontra nele um cérebro duro e seco. Ainda que lhe agradasse o autocontrole, não observamos nele traços de rigidez pouco humana. Se por um lado sempre colocou em destaque a relatividade das coisas criadas, jamais negou a riqueza da vida ou a maravilha do mundo. Entendimento e coração sempre de mãos dadas. Por conseguinte, amor, vida comum e amizade constituem o núcleo de sua vida e pensamento. Uma leitura superficial das Confissões pode dar a impressão de um Agostinho introvertido, em constante empenho de auto-análise. A realidade foi bem outra. Surpreenderá saber que este homem raramente esteve sozinho. Ele mesmo declarava ser impossível viver feliz sem amigos. Uma amizade lhe arrancaria a metade de sua alma, porém, também mediante a amizade, aquelas feridas cicatrizaram. Talvez isto seja devido ao sentimento congênito de solidariedade dos africanos.
Apaixonado pela verdade
“Unicamente a verdade alcança a vitória, e a vitória da verdade é o amor” (Sermão 385,1).
Sem dúvida sua paixão pela verdade o tomou um lutador tenaz; quando tomava um assunto com interesse, dificilmente o abandonava. Fora das controvérsias, mostrava um grande senso de modéstia. Em sua velhice revisou seus livros e declara: “Não pretendo que alguém aceite todas as minhas opiniões, de modo que ele ou ela me sigam cegamente, exceto naqueles pontos em que o leitor chegue à convicção de que eu não estava errado. Porque nem mesmo eu fui coerente em tudo. Escrevi livros constantemente procurando progredir. Não comecei sendo perfeito, e pretender que agora em minha velhice escreva perfeitamente, seria antes um sinal inequívoco de engano, que de veracidade”.
Em uma carta a uma jovem, chamada Florentina, escreveu: “Não deverias pensar que irias encontrar em mim a resposta a todas as tuas perguntas e a tudo quanto desejas conhecer. Porque eu não me apresento como o mestre consumado, senão como um homem em busca de luz, em união com aqueles pelos quais fui solicitado com o fim de iluminá-los. Por favor, toma consciência do perigo em que nos encontramos, de quem se espera que sejamos não somente mestres, senão mestres de realidades divinas, ainda que não sejamos senão meros seres humanos”.

A EVOLUCÃO DO JOVEM AGOSTINHO


O Estudante e sua amante
Terminados seus estudos primários em Tagaste, Agostinho foi estudar o que hoje chamamos de Ensino Médio na cidade de Madaura, centro de maior nível cultural de Tagaste. Ao completar 15 anos, retornou a Tagaste, passando um ano em seu lar com a finalidade de permitir a seu pai conseguir as economias necessárias para custear seus estudos posteriores. Foi um ano de inatividade, descrito por ele nos seguintes termos: “Ganharam vigor e cresceram por sobre minha cabeça os espinhos de minhas paixões. E não havia uma mão que as arrancasse pela raiz”.
Com a ajuda de Romaniano, Agostinho chegou a Cartago em 370 para estudar Retórica. Retórica, a arte de falar e escrever, era naquela época o auge da cultura, que abria as portas de acesso às mais brilhantes carreiras políticas. Na qualidade de Metrópole da África e a maior cidade do Império do Ocidente, depois de Roma, Cartago era também um local de amores ilícitos. Como Agostinho jamais havia se apaixonado, ainda que suspirasse pelo amor, buscou o objeto de seu amor. “Amar e ser amado era para mim uma doce ocupação, sobretudo se conseguisse desfrutar do corpo da pessoa amada”.
Conseguiu uma amante de classe inferior à dele, à qual guardou fidelidade durante uns quatorze anos. Ignoramos seu nome. Foi a mãe de seu filho Adeodato — presente de Deus — que morreu jovem, aos 18 anos de idade. A relação de Agostinho com sua amante, constituía uma união legalmente reconhecida, algo assim como um concubinato.
Também em Cartago, aos 19 anos, descobriu sua vocação filosófica. Leu um livro de Cícero que elogiava o “amor à sabedoria”. A partir de então, a busca da verdade e da sabedoria inspirou Agostinho pelo resto de sua vida. Uma lacuna achou em Cícero. Não encontrava ali o nome de Cristo, e começou a ler a Sagrada Escritura, porém seu estilo o desiludiu profundamente. Somente muito mais tarde veria realizado seu sonho de juventude, quando chegou a ser monge e filósofo cristão.
Abraça o Maniqueísmo
Durante sua estada em Cartago, Agostinho ao Maniqueísmo, se bem que somente qualidade de “ouvinte”. Várias razões contribuíram para que se sentisse atraído por esta seita. O Maniqueísmo pretendia ser uma religião racional, oferecendo compreensão sem impor a fé exigida pela Igreja Católica. As críticas contra o Antigo Testamento satisfaziam a inconformidade de Agostinho sobre algumas passagens do mesmo.A liturgia maniquéia usava com freqüência os nomes de Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo, pelo que apresentava certa afinidade com o cristianismo. Os maniqueus asseguravam ter a solução de um problema que preocupava intensamente a Agostinho: o problema do mal. Os maniqueus estabeleciam dois princípios eternos, radicalmente contrários entre si: o bem e o mal, a luz e as trevas em luta permanente. Agostinho sentia dentro de si a tensão entre o bem e o mal, a virtude e o pecado. Havia em sua vida uma forte carga que lhe causava sentimentos profundos de culpabilidade, O desassossego e inquietude de seu interior lhe conduziram ao Maniqueísmo. Esta doutrina o libertou de um íntimo sentimento de culpa: “Ainda seguia pensando que não somos nós que pecamos, senão que o que peca em nós é uma natureza estranha que não sei definir. Assim é que meu orgulho se sentia cômodo por ver-se livre de culpa. Logicamente, tampouco tinha que confessar meus pecados quando agia mal, para que tu curasses minha alma porque pecava contra ti. Agradava-me desculpar-me, e preferia acusar outro elemento estranho que estava em mim e que não era eu”.
Ao longo de dez anos, Agostinho permaneceu no Maniqueísmo, ainda que seu entusiasmo por ele perdesse vigor progressivamente.
Professor de Retórica na Itália
Por volta do ano 374, Agostinho voltou a Tagaste, onde abriu uma escola de gramática, porém logo retornou a Cartago para ensinar Retórica. A baderna e a indisciplina caracterizavam os estudantes cartaginezes, autores de freqüentes atos de vandalismo. Sendo assim, decidiu ir para Roma, pois foi informado de que ali não acontecia nada parecido. Sua mãe se opunha tenazmente à sua partida, porém a ambição do filho foi mais forte. Chegando em Roma, Agostinho entrou em contato com a comunidade maniquéia local. Continuou a ensinar e se decepcionou ao averiguar que os estudantes romanos se esquivavam de pagar aos professores, faltando à palavra dada por amor ao dinheiro. Ao tomar conhecimento do projeto de se nomear um professor de Retórica em Milão, viajou àquela cidade em 384, com o apoio de amigos maniqueus influentes. Milão era, então, a residência imperial e a cidade do bispo Ambrósio. O que Agostinho não podia prever era que ali acabaria sua docência, renunciaria a uma brilhante carreira política e se converteria verdadeiramente a Deus.

CONVERSÃO DE AGOSTINHO


Separação de sua amante
Mônica procurou marcar com o sinal da cruz e o sal bento a seu recém-nascido Agostinho que assumiu, dessa forma, um compromisso com a Igreja Católica como catecúmeno. A grande importância e responsabilidade inerentes ao batismo levaram muitos pais cristãos a adiarem o batismo; por esta razão muitos recebiam o batismo no leito de morte. A decisão de Agostinho de receber o batismo demorou a tornar-se realidade devido a dois obstáculos: um de natureza moral e outro de índole intelectual. O problema estava em remover estes obstáculos. O relacionamento com sua amante terminou graças à pressão de Mônica, que lutou por conseguir um matrimônio de primeira classe para seu filho. Encontrou uma nova noiva, de apenas dez anos, dois anos abaixo da idade núbil. Agostinho amou sinceramente sua concubina e a separação fez sangrar seu sensível coração. “Meu coração, que estava intimamente unido a ela, foi partido e ferido, deixando um rasto de sangue. Ela retornou à África com o propósito de jamais unir-se a outro homem”. Ele, infeliz e incapaz de seguir o exemplo daquela mulher conseguiu outra amante. Isto, no entanto, não lhe proporcionou alívio, conforme ele mesmo confessa: “Mas nem por isso se curava aquela minha ferida, aberta pela separação da primeira mulher; depois de uma febre elevada e de uma dor insuportável, começava a gangrenar-se. À medida que ia esfriando-se a ferida, as dores tornavam-se mais desesperadoras”.
Para Agostinho a conversão levava consigo muito mais que um honroso matrimônio; implicava na dedicação ao ideal monástico do ascetismo e a castidade.
Da razão à fé
As dificuldades intelectuais comportavam maior complexidade. Durante muito tempo considerou a fé católica própria para pessoas simples como sua mãe Mônica. Porque ele havia colocado toda sua confiança no poder da razão e desejava compreender e entender tudo mediante seus próprios recursos. Era um racionalista no sentido mais pleno da palavra. Os maniqueus lhe haviam prometido a compreensão dos mistérios da vida, sem necessidade da fé. Eles zombavam da fé e prometiam conhecimento. E, em troca, exigiam a crença em inúmeras fábulas e mitos absurdos: “Mandavam-me crer em Manes”. Estava desiludido e seu racionalista ia por água abaixo. A estas alturas deu preferência à fé católica, por parecer-lhe mais aceitável que a Igreja lhe propusesse crer no que não podia ser demonstrado pela razão. Assim mesmo, tomou consciência do papel da fé na vida cotidiana: quantas coisas cremos sem termos visto pessoalmente, fatos ocorridos em nossa ausência, tais como acontecimentos narrados na história das nações, fatos concernentes a lugares e cidades jamais vistos por nós, coisas aceitas unicamente pela palavra de amigos, de médicos ou de outras pessoas. E tirou esta conclusão: se não acreditarmos no que nos dizem, não podemos desenvolver-nos na vida. Depois de perder sua fé no Maniqueísmo, Agostinho passou por uma breve crise de ceptismo, durante a qual duvidou poder encontrar a verdade. Será que a questão não está em duvidar de tudo? Alcançar a verdade, não é algo superior à capacidade humana? Não obstante, esta crise preparou o terreno para a conversão, que estava prestes a chegar.
A influência de Ambrósio
Muitas pessoas tiveram influência na conversão de Agostinho; menção especial merece Santo Ambrósio, bispo de Milão. Sua influência não esteve tanto num contato pessoal, quanto em sua pregação, que levou Agostinho a descobrir o quanto à fé cristã era diferente daquilo que ele havia imaginado. Ambrósio com seus sermões lhe ensinou a interpretar os textos bíblicos, e a colocar-lhe algumas idéias totalmente novas: “Percebi, seguidamente, ao ouvir pregar nosso bispo... que quando pensamos em Deus ou na alma, que é a mais próxima de Deus no mundo, nossos pensamentos não captam nada material”. A leitura dos livros dos filósofos platônicos lhe proporcionou uma penetração mais profunda no mundo do espírito, e estes escritos lhe deram a resposta ao ardente problema do mal. Alguns amigos lhe relataram exemplos de pessoas importantes convertidas à fé cristã.
Toma e lê
Assim chegou Agostinho à bem conhecida crise pessoal no jardim de sua residência em Milão. Ali ouviu uma voz procedente de uma casa vizinha, cantando como se fosse uma criança repetindo uma e outra vez: “toma e lê, toma e lê”. Ele interpretou aquelas palavras como se fossem um mandado divino, abriu a Bíblia e leu a primeira passagem que se ofereceu aos seus olhos: “Nada de orgias e bebedeiras; nada de devassidão e libertinagem; nada de rivalidades e invejas. Revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo e não vos preocupeis com a carne para satisfazer suas concupiscências”. (Rom 13,13-1 4). Neste momento, toda sombra de dúvida se dissipou. Não foi meramente algo acidental que um texto do grande convertido, o Apóstolo Paulo, tenha sido o núcleo da conversão de Agostinho. A influência de Paulo em Agostinho continuou durante toda a sua vida. Muitos aspectos de sua teologia e espiritualidade transpiram influencia paulina, por exemplo, a relação entre lei e graça, as conseqüências do pecado original, o paralelismo entre Adão e Cristo, e o tema do Corpo Místico de Cristo.
Depois das férias de 386, Agostinho abandonou a docência, e retirou-se a uma Quinta em Cassiciaco, para dedicar-se a estudar, a escrever e a preparar-se para o batismo. Na Vigília Pascal do ano 387, recebeu o batismo das mãos de Ambrósio, juntamente com seu filho Adeodato e seu amigo Alípio. Agostinho, como ele mesmo nos conta, havia dado o salto: “Por que confias em ti mesmo, somente para convencer-te de que não ofereces garantia de segurança? Lança-te, em seus braços, não tenhas medo. Ele não se afastará para que caias. Lança-te sem vacilar: Ele te abraçará e te curará”.

RETORNO A ÁFRICA – MONGE – SACERDOTE – BISPO


Servo de Deus: monge
Pouco depois do batismo Agostinho decide voltar a África, decisão consciente da renúncia às suas esperanças terrenas. Em Óstia, o porto marítimo de Roma, a caminho da pátria, Mônica caiu enferma e faleceu. Sua morte atrasou seu regresso a África por um ano. Contudo, em 388, Agostinho chegou a Tagaste em companhia de seu filho e de um pequeno grupo de amigos íntimos. Como servos de Deus, fixaram sua residência em uma propriedade da família de Agostinho, em Tagaste. Agostinho vendeu parte de sua fazenda e organizou uma espécie de comunidade monástica. Era um grupo de entusiastas com os mesmos ideais que se havia unido a ele, para um gênero de vida monacal, sob a direção de Agostinho, como orientador espiritual da comunidade. Agostinho pretendia viver uma vida de retiro, estudo, contemplação, meditação e oração pelo resto de seus dias. Não obstante, este período feliz de descanso, iria prolongar-se por pouco mais de 3 anos. O antigo monaquismo era essencialmente um movimento leigo, e por isso mesmo o monge evitava a honra e a tarefa do sacerdócio. Daí que, quando Agostinho foi a Hipona com a finalidade de conseguir um novo adepto para seu mosteiro, evitou visitar cidades onde a sede episcopal estivesse vazia. Apesar de tudo, sua viagem a Hipona teve um desenlace bem diferente do esperado por ele.
Sacerdote, Bispo e Monge
O bispo de Hipona, Valério, era um grego ancião com dificuldade para expressar-se com destreza em latim. Necessitava com urgência de um sacerdote ajudante, que no futuro pudesse sucedê-lo no cargo. O bispo de Hipona já havia informado aos seus fiéis os seus planos. Com insistente alarido, esses fiéis pediam a Agostinho que fosse seu sacerdote. Levaram-no contra sua vontade e o apresentaram a Valério para ordená-lo sacerdote. Tais ordenações não eram incomuns no final do Império Romano. A vocação ao ministério eclesiástico não era assunto dependente da vontade da pessoa; séculos mais tarde seria assim, porém, em épocas anteriores, a comunidade decidia. Ademais, Valério acolheu com gosto a proposta de Agostinho quanto a estabelecer um mosteiro como o de Tagaste, e colocou à sua disposição um horto junto à Igreja. Em 395, Valério escreveu confidencialmente ao Primado de Cartago, solicitando a consagração de Agostinho como seu coadjutor. Um ano mais tarde, morria Valério, e Agostinho tornou-se bispo da cidade portuária, Hippo Regius.
Todos estes acontecimentos exigiram mudanças profundas na vida de Agostinho. Embora tivesse que renunciar a muitos de seus sonhos, aceitou a nova missão com resoluto ânimo, plenamente consciente de sua responsabilidade e do fardo que agora assumia. Porém, mesmo como bispo, desejava viver em uma comunidade monástica. Abandonou o mosteiro de leigos para residir na casa do bispo, e ali estabeleceu um mosteiro de religiosos. Viveu nele, de forma plena, a vida em comum com seus irmãos, na medida em que lhe permitiam as tarefas episcopais. Este mosteiro alcançou grande fama por ser o berço de sábios e competentes bispos para toda a Igreja do Norte da África. Por um período de quase quarenta anos, Agostinho foi o autêntico líder desta Igreja.

AS TAREFAS DE UM BISPO


Primazia da Bíblia
O bispo Agostinho levou uma vida muito atarefada, ocupando por completo seu tempo com a pregação, o ensino, a instrução catequética, os sínodos, os debates públicos e as viagens por todo o Norte da África. Além disso, o Imperador Constantino havia confiado o ofício de Juiz local à autoridade dos bispos. Cada manhã o solicitavam as demandas judiciais: questões de herança, de tutela, de propriedade, de limites e assim sucessivamente, uma tarefa ingrata até o extremo. Além do mais, como homem de estudo e contemplação, foi um prolífero escritor. Suas obras abrangem umas 12.000 páginas impressas: 113 livros, 247 cartas, e mais de 500 sermões chegaram até os nossos dias. Como conseguiu organizar-se para sair bem de tantas e tão variadas atividades? Mais ou menos ele mesmo vem nos dar a resposta quando afirma que se dedicava aos seus escritos principalmente à noite. Uns taquígrafos escreviam enquanto ele ditava. Possídio, seu amigo e biógrafo, nos diz que, uma vez concluídos os assuntos temporais e tediosos, se entregava à meditação da Sagrada Escritura. A importância da Bíblia na obra de Agostinho excede toda ponderação. Conhecia-a de memória; constituía para ele o sumo da verdade, a fonte de todo o saber e o centro de toda cultura e vida espiritual. Sua teologia é bíblica no pleno sentido da palavra. Seu propósito consistia em que através de sua voz, se a palavra de Deus. Outra característica de suas obras é que foram escritas, em sua maior parte, a pedido de outros; muito poucos são os livros escritos por iniciativa própria. Eis aqui uma ligeira descrição de seus escritos.
Escritos anti-maniqueus
Agostinho considerou sua primeira obrigação dedicar parte do seu saber e tempo a conversão de seus antigos amigos, os maniqueus. O que ele havia aceitado anteriormente como verdade incontestável, agora sabia que era falso. Ele havia sido responsável pela adesão ao Maniqueísmo do grupo de seus seguidores, e agora tratava de trazê-los de volta para o Cristianismo. Por isso, seus primeiros escritos têm como finalidade contestar a doutrina maniquéia.
Obras anti-donatistas
No período seguinte de sua vida, teve que preocupar-se com uma situação bem triste; o cisma dentro da Igreja norteafricana. Tão logo ordenado sacerdote, teve que fazer frente à desunião dos cristãos, causada pelo cisma donatista. Em cada cidade havia uma Igreja donatista e outra católica, em cada diocese um bispo donatista e outro católico, no total uns trezentos bispos de cada parte. Dizer que todos deveriam ser um em Cristo resultava utópico. Os donatistas pretendiam formar a única Igreja imaculada; tinham os católicos por traidores à pureza da lei cristã. Para entender o doloroso de tal divisão, precisamos recordar que os donatistas utilizavam a mesma Sagrada Escritura, professavam a mesma fé, possuíam os mesmos sacramentos e celebravam a mesma liturgia que os católicos. O que dividia os cristãos na África era exclusivamente o ódio, e o conflito resultou muitas vezes em autêntica guerra civil. Agostinho empregou enorme energia para restaurar a paz e a unidade, porém, lamentavelmente jamais logrou êxito pleno para acabar com o cisma donatista. E isto apesar do fato de que a Conferência Episcopal em Cartago, em 411, sob a presidência de um delegado imperial muito ponderado, Marcelino, condenou os Donatistas. Dois anos mais tarde, o mesmo Marcelino foi executado em Cartago. Este assassinato constituiu um duro golpe para Agostinho, que encontrou nisto uma das razões para perder o entusiasmo em favor de uma aliança entre o Império Romano e a Igreja Católica.
Escritos anti-pelagianos
No ano 411, depois da condenação do Donatismo, Agostinho podia pensar numa era de paz, porém, em vez disso, aguardava-lhe uma outra controvérsia: o Pelagianismo. Pelágio era um servo de Deus, inspirador de uma vida cristã mais radical e ascética, e tido em grande estima pelos aristocratas de Soma. Acentuava sobremaneira o papel do livre arbítrio e os esforços que os seres humanos têm de fazer a perfeição está em poder da pessoa humana, segundo ele, resulta ser algo obrigatório. Não é de admirar que o escandalizasse aquela frase de Agostinho em suas Confissões: “Manda o que queiras; dá-me o que mandas”. Para ele isto era uma covardia e um relaxamento. O conceito de Pelágio sobre a perfeição cristã contrastava até certo ponto com a teologia e a experiência do convertido Agostinho. Pelágio, por certo, não negava o papel da graça de Deus, porém a entendia como uma ajuda divina que vem de fora. Pelo contrário, Agostinho, como São Paulo, estava convencido de que a vontade humana necessita ser reforçada desde o interior pela graça de Deus: todo o bem que fazemos é dom da graça de Deus. Parecia-lhe que a pretensão de Pelágio, de poder conseguir uma Igreja sem mancha ou ruga, mantinha a presunção donatista de uma Igreja imaculada. Aos olhos de Agostinho, a situação humana oferece muito mais complexidade. A liberdade humana não é uma qualidade estática. Nossa
liberdade está em constante desenvolvimento: a liberdade humana, por natureza, é uma liberdade limitada, que, a caminho da perfeição, tem que tomar-se mais livre. Agostinho tinha fé na doutrina do pecado original, quer dizer, na existência de uma culpa coletiva, em decorrência da qual a humanidade, em seu conjunto, é responsável pelo mal no mundo. Por certo que não vamos aderir à doutrina de Agostinho em todos seus pormenores acerca do pecado original (por exemplo, sua convicção de que as crianças não batizadas seriam excluídas da mais elevada situação de felicidade eterna). Sua última obra, incompleta ao morrer, ia contra o Pelagiano Juliano de Eclana, filho de um amigo, bispo italiano. Juliano foi o mais hábil adversário de Agostinho. O debate de Agostinho com o muito mais jovem Julián foi, sem sombra de dúvida, o mais dramático de sua vida, no qual as posturas de ambas as partes se tornaram mais e mais inflexíveis.

A ÁFRICA NA ÉPOCA DE AGOSTINHO

Ricos e pobres no Norte da África
Para entender a atividade de Agostinho como bispo é necessário conhecer o ambiente do Norte da África nesta época. Desde muito tempo, a África do Norte era o celeiro do Império Romano. Uma região rica e próspera, graças à sua planície costeira abundante em trigo, e uma região de colinas no interior, grande produtora de azeite de oliva. Azeite e trigo constituíam os principais produtos de um crescente comércio de exportação. Ainda que a riqueza e o poder do Império fossem declinando a olhos vistos, a África do Norte enfrentava a crise melhor que outras partes do Império. Apesar de tudo, na África do Norte existia uma grande desigualdade econômica, causa de graves tensões sociais. Somente uma minoria era beneficiada com a riqueza do país e o suor dos trabalhadores. Como acontece nestas situações, os mais fracos eram as vítimas.
Decadência do Império Romano
Toda vida de Agostinho se desenvolveu no período de decadência do Império Romano. Uma amostra de nossa assertiva está no fato de que a instituição do ‘defensor dos direitos dos pobres’ estava em desuso em Hipona, e que em vão os bispos africanos defendiam o restabelecimento do dito ofício. As numerosas invasões causavam a decadência no estilo de vida da Itália. Em 410, as defesas de Roma caíram frente ao ataque dos Visigodos de Alarico. Muitos romanos buscavam refúgio na África do Norte. A reflexão sobre o saque de Roma lhe inspirou uma de suas obras mais importantes, vinte e dois livros sobre A Cidade de Deus, na qual existem dois temas muito ligados entre si: o aniquilamento das civilizações do mundo e o do eterno destino da raça humana. A situação próspera da África não podia permanecer fora de perigo diante do que acontecia na Itália. Novas cartas de Agostinho, descobertas há pouco, retratam o estado lamentável da África do Norte durante os últimos dez anos de sua vida. A caça de escravo chegou a constituir uma autêntica praga. Foragidos planejavam assaltar lugares isolados pouco habitados, onde apanhavam cidadãos livres com a finalidade de vendê-los a mercadores de escravos. A desgraça chegou ao cúmulo quando, em 429, os Vândalos e Alanos, sob as ordens de Genserico, cruzaram o Estreito de Gibraltar, invadiram a África do Norte e avançaram até o leste, ao longo da costa. Havia começado o fim do poder de Roma na África.